A vida longe do crime
Caio Barreto Briso
Nosso repórter morou duas semanas no Dona Marta, o primeiro morro pacificado da cidade. Os problemas ainda existem, mas as mudanças são notáveis
Felipe Fittipaldi |
O lazer dos moradores: meninos jogam futebol no campo próximo à sede da UPP, rapazes soltam pipa no mirante, onde fica a estátua de Michael Jackson, casais em aula de dança de salão e a festa na quadra da escola |
O cheiro de pólvora invade o ambiente. Na fuga, traficantes deixam papelotes de cocaína para trás e correm morro acima. Alguns poucos ficam em seus lugares, trocando tiros com os policiais. O barulho é aterrorizante, uma mistura de rajadas de grosso calibre, gritos apavorados e pedidos de socorro. Não raro, vítimas fatais pelo chão. Hoje a descrição dessa cena parece fazer parte de um pesadelo distante, um universo paralelo. Mas há apenas dois anos imagens dramáticas como essa faziam parte da rotina do Dona Marta, em Botafogo, aos pés do Cristo Redentor. Na Praça Cantão, onde funcionava o principal ponto de tráfico do lugar, dezenas de bandidos costumavam circular armados, vendendo maconha e cocaína. A triste realidade começou a mudar em dezembro de 2008, quando a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi ali instalada. Domingo passado (16), no mesmo local onde os criminosos desfilavam com seus fuzis, o contraste era evidente: um grupo de garotos jogava pingue-pongue com entusiasmo enquanto outros meninos trocavam passes com uma bola vermelha. Ao fundo, o burburinho alegre de conversas informais, risos e música. Não é preciso ser bom observador para notar que o desespero do passado deu lugar a uma tranquilidade que lembra a de uma pequena cidade do interior. E o mais importante: essa não foi a única transformação no cotidiano dos 6 000 moradores. “Não é o paraíso, né? Mas recuperamos a capacidade de sonhar, de querer crescer. Antes não dava”, diz a comerciante Ivone Duarte, 28 anos.
Sua trajetória é um dos melhores exemplos para ilustrar o que mudou com a presença do poder público — e o impacto que isso pode ter na vida de uma pessoa. Antes da pacificação, Ivone vendia roupas para as amigas na cozinha de sua casa, uma residência simples na parte baixa da favela. Vivia preocupada com o constrangimento das clientes quando passavam pelos criminosos. No ano passado, percebendo que a partida deles não era temporária, ela e o marido, Hudson Freire, fotógrafo, ganharam confiança para arriscar. O casal juntou as economias de três anos e conseguiu comprar à vista um imóvel de 25 000 reais na Praça Cantão. Nascia assim seu sonho antigo: a loja Comunidade Fashion, dedicada à clientela feminina. Sem exageros, o micronegócio poderia estar em qualquer bairro da cidade. As paredes são bem pintadas e decoradas, um computador registra o movimento do estoque e, na semana passada, uma máquina de cartões de crédito começou a operar. Em menos de doze meses de funcionamento, a lojinha já atrai compradoras de Botafogo e a renda da família aumentou 50%. Animado, Hudson largou o emprego numa agência de publicidade em Niterói e passou a se dedicar integralmente à empresa, que recentemente se registrou no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas. “Pagando impostos, eles podem emitir nota fiscal, vender para outras empresas, ter acesso ao sistema de Previdência Social e contratar funcionários”, explica Felipe Góes, secretário municipal de Desenvolvimento.
Fernando Lemos |
O DJ Thiago Firmino, que também trabalha como guia turístico, e a comerciante Ivone Duarte, dona de uma loja de roupas femininas: pequenos negócios começaram a atrair visitantes de fora da favela |
Dito assim, o círculo virtuoso parece simples. Uma pequena comerciante ganha crédito, sai da informalidade e começa a prosperar. A questão é que nada disso seria possível se o morro permanecesse sob o domínio dos bandidos. As clientes de Botafogo não iriam subir a favela, não existiria máquina de cartão e o próprio casal estaria temeroso de abrir uma loja nessas condições. O cearense José Bonfim Carlos, 40 anos, conhece bem a diferença. Há pouco mais de dois anos, traficantes armados ficavam na porta de seu pequeno restaurante, dia e noite, devido à localização privilegiada do imóvel. Dali, descortina-se uma vista total do complexo, transformando o ponto em um posto excepcional de observação das principais vielas. Sem outra opção, ele era obrigado a servir comida à bandidagem. Morria de pavor. Quando não estavam na escola, suas duas filhas, de 8 e 9 anos, passavam o tempo todo dentro de casa, vendo TV. Sua mulher queria retornar à terra natal. Com a chegada da UPP, as coisas mudaram. Carlos, conhecido como Zequinha, investiu 3 500 reais na ampliação e pintura do espaço. Comprou um fogão industrial, um freezer novo e uma televisão de plasma para os clientes. Antes acanhado, com uma única mesa para quatro pessoas, o lugar passou a ter capacidade para acomodar treze fregueses sentados. Com as melhorias, o número de refeições vendidas triplicou. “Agora a vida é outra. Não vamos voltar mais para o Ceará”, conta, entusiasmado.
Localizado em pleno coração da Zona Sul carioca, o Dona Marta tem uma configuração estreita, com pontos geográficos de fácil identificação. À direita de quem olha da Rua São Clemente, em Botafogo, fica o bondinho, construído em 2008, que serve hoje como transporte para os moradores e visitantes. Do lado esquerdo, bem visível, foi erguido no ano passado um muro de cimento, com 3 metros de altura, para evitar a expansão dos casebres rumo à mata. No pico, reina absoluta a sede da UPP. Pela facilidade de acesso e dimensões reduzidas, trata-se de um morro pop. Não raro, recebe figuras famosas. Durante a permanência da equipe de VEJA RIO na favela, o senador republicano John McCain, candidato derrotado nas últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos, esteve lá. Declarou-se encantado. Mas a lista é imensa: Madonna, o ator Hugh Jackman, Alicia Keys e, no passado mais remoto, o cantor Michael Jackson. Tal visibilidade ajuda a explicar o fascínio que o Dona Marta exerce nos turistas. São dezenas de visitas por dia. Em sua grande maioria, estrangeiros que desejam ver uma favela de perto. Tempos atrás, alguns se arriscavam mesmo com os bandidos armados. A diferença é que agora a visita pode ser feita com segurança, na companhia dos monitores do programa Rio Top Tour. Um deles é Thiago Firmino de Oliveira, 29 anos. Em sua casa, de três andares e cinco cômodos, moram quatro pessoas. Lá dentro, há ar-condicionado e televisão nos dois quartos, água quente no banheiro e aparelho de som na sala. Na laje, uma ducha usada nos dias mais quentes. Como guia turístico, Firmino chegou a receber, em um dia, mais de 300 reais. Mas sua paixão são as carrapetas. DJ desde a adolescência, apresenta um programa diário na rádio comunitária, o Na Balada. “A UPP fez bem ao meu bolso”, reconhece.
Da mesma forma que acontece em outros morros, pessoas de diferentes condições sociais, e até de formação escolar, habitam o Dona Marta. Na parte baixa ficam as melhores casas, todas feitas de concreto. Na Rua Marechal Francisco de Moura, em um dos acessos à favela, um apartamento de dois quartos no edifício mais arrumadinho vale hoje cerca de 200 000 reais. Pela manhã, saem dali centenas de pessoas que vão para o seu emprego, com carteira assinada e vale-transporte. Do meio até o pico, a situação vai piorando. Os becos são precariamente iluminados e as moradias tornam-se menos cuidadas, com os tijolos aparentes. Lá no alto estão os casebres de madeira ou zinco e ainda existe esgoto a céu aberto, com um odor insuportável, que faz sair ratos e baratas de todos os cantos. Apesar das diferenças de poder aquisitivo e condições de vida, existe uma uniformidade na maneira como esses grupos se divertem. As crianças promovem batalhas no céu com pipas de todas as cores, que elas compram por 1 real. O campo de grama sintética, próximo à sede da UPP, costuma ser palco de animadas peladas, e a quadra da escola de samba Mocidade Unida do Santa Marta vira ponto de encontro aos fins de semana. Os bailes funk, utilizados pelo tráfico de drogas para fazer apologia do crime, continuam proibidos, mas o ritmo toca normalmente nas festas. Uma novidade em alta são as aulas de dança de salão promovidas pelo professor Cesar Carvalho. “Cobramos um preço acessível de 25 reais por mês. O pessoal adora”, conta ele.
1 - Parte alta da favela
Ali, há muitos barracos feitos com compensados de madeira que abrigam os moradores mais pobres. Em algumas moradias, não há sequer janelas e banheiro
Ali, há muitos barracos feitos com compensados de madeira que abrigam os moradores mais pobres. Em algumas moradias, não há sequer janelas e banheiro
2 - Ex-QG do tráfico
Os marginais se reuniam armados na Praça Cantão, onde funcionava a boca de fumo da favela. Hoje, o local é um símbolo de transformação com suas casas coloridas e seu clima de cidade do interior
Os marginais se reuniam armados na Praça Cantão, onde funcionava a boca de fumo da favela. Hoje, o local é um símbolo de transformação com suas casas coloridas e seu clima de cidade do interior
3 - Parte baixa da favela
As casas são feitas com tijolos e contam com boa infraestrutura de água e saneamento
As casas são feitas com tijolos e contam com boa infraestrutura de água e saneamento
4 - Sede da UPP
O prédio de três andares funcionava antes como sede da associação de moradores
O prédio de três andares funcionava antes como sede da associação de moradores
5 - Campo de futebol society
Antes, o campinho era de terra batida. Com a UPP, o espaço foi reformado e ganhou tela de proteção de 360 graus
Antes, o campinho era de terra batida. Com a UPP, o espaço foi reformado e ganhou tela de proteção de 360 graus
6 - Espaço Michael Jackson
A laje em homenagem ao cantor oferece uma das vistas mais bonitas da cidade, de onde se veem o Pão de Açúcar, o Cristo, a Lagoa e as praias de Copacabana, Ipanema e Leblon
A laje em homenagem ao cantor oferece uma das vistas mais bonitas da cidade, de onde se veem o Pão de Açúcar, o Cristo, a Lagoa e as praias de Copacabana, Ipanema e Leblon
7 - Plano Inclinado
O bondinho é utilizado em deslocamentos da parte baixa para a parte alta do morro por moradores e turistas
O bondinho é utilizado em deslocamentos da parte baixa para a parte alta do morro por moradores e turistas
Principal bandeira do governo estadual na área de segurança, as UPPs se espalharam por outras doze favelas da cidade, retirando do domínio do tráfico cerca de 200 000 pessoas — e alguns importantes pontos de venda. Até 2014, o objetivo é levá-las para outras 100 localidades, uma medida que custará cerca de 2 bilhões de reais e a formação de 25 000 novos PMs. No Dona Marta, onde o programa foi iniciado, 123 homens fardados trabalham na segurança dos moradores. Eles se dividem em quatro turnos e fazem rondas constantes em toda a extensão do complexo. Desde que a UPP foi instalada, em dezembro de 2008, não houve um só assassinato — uma conquista e tanto. As vielas estreitas do morro já presenciaram matanças terríveis. A primeira grande guerra deu-se no fim dos anos 80, com a disputa entre dois traficantes (Emílson dos Santos Fumero, o Cabeludo, e Zacarias Gonçalves Rosa Neto, o Zaca) pelo controle da venda de drogas. Só nesse confronto, que durou catorze dias, quase trinta pessoas morreram. Anos mais tarde, Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, instituiu o binômio armas pesadas e paternalismo para dominar o terreno. Hoje é o poder público quem dá as cartas. Nas datas comemorativas, como Dia das Crianças e Natal, uma grande distribuição de presentes é promovida pelas autoridades. “Nosso objetivo é aprofundar a relação com a comunidade. Focamos as crianças porque queremos realizar um trabalho de prevenção. Aos poucos, vamos integrando o policial à vida dessas pessoas”, diz o coronel Robson Rodrigues da Silva, comandante das UPPs.
Fernando Lemos |
Zé do Carmo, apelidado de Eike Batista do Dona Marta, e José Bonfim Carlos, dono de um restaurante: confiança para investir depois que os bandidos foram embora |
Evidentemente, ainda existe um imenso clima de desconfiança no ar. Depois de anos de abandono e mortes dos dois lados, a relação é fria. Se algum morador cumprimenta ou simplesmente acena de longe para um PM, um vizinho logo espalha: “Fulano está fechado com a polícia”. Na gíria do pedaço, “fechado” significa aliado, o que continua a ser malvisto. O empresário José do Carmo dos Santos, 47 anos, foi alvo recente de uma dessas situações. Apelidado de Eike Batista, ele possui cinco imóveis na favela. Seus negócios, que já iam bem antes da UPP, se ampliaram. Hoje, incluem um salão de beleza e uma barbearia. No último réveillon, Santos participava de uma festa, com pagode e cantoria. Seis policiais estavam próximos do local, de plantão em frente à quadra da escola de samba. Ao perceber a presença deles, o comerciante foi até lá e ofereceu uma lata de cerveja a cada um. Depois de alguma resistência, todos aceitaram a oferta. Bastou esse gesto de boa vontade para que os comentários maledicentes começassem. “Infelizmente, vai demorar para que esse ranço desapareça”, lamenta Santos.
Em outra esfera, a recepção às concessionárias de serviços tem sido digerida com mais facilidade pela população. A Light, por exemplo, montou uma relação bem-sucedida com os favelados do Dona Marta. Depois da UPP, ela aproveitou a oportunidade para diminuir suas perdas com os roubos de energia, os chamados “gatos”. Para isso, instalou no morro postes de fibra, menos vulneráveis às ligações clandestinas. Atualmente, todas as 1 500 casas encontram-se com seu fornecimento regular, e o índice de inadimplência é de apenas 2%. Como forma de motivar os moradores a regularizar a situação, a companhia substituiu, gratuitamente, 700 geladeiras velhas por modelos mais novos e econômicos. Também vítimas de pirataria generalizada, duas empresas de TV a cabo, Sky e Via Embratel, aumentaram sua presença na localidade depois que os bandidos foram expulsos. Criaram pacotes populares a preços acessíveis. Somadas, estão em 200 residências e disputam clientela palmo a palmo. O próximo combate no mundo dos negócios se dará entre Santander e Bradesco para ver qual deles será o primeiro a abrir uma agência bancária na favela.
Vidal Cavalcante/Ag.Estado |
O morro em dois momentos: a visita recente do senador republicano John McCain e no passado, quando traficantes armados ditavam as ordens e aterrorizavamos moradores |
Os primeiros moradores começaram a chegar ali por volta dos anos 20. Eram operários que trabalhavam na ampliação do Colégio Santo Inácio, localizado na Rua São Clemente. Vem desde essa época a confusão em torno do seu nome. A favela chama-se Santa Marta por causa de uma imagem da santa homônima guardada na capela. O morro foi batizado de Dona Marta porque um antigo proprietário daquelas terras queria homenagear a mãe. Marcante em sua história, o tráfico de drogas surgiu na década de 70, com tipos que respondiam por alcunhas como Bolado e Pedrinho da Prata. Eram bandidos que se vestiam bem, mantinham os revólveres escondidos e não permitiam o envolvimento de crianças. Sem combate das autoridades durante décadas, o código se alterou. A atuação dos delinquentes ficou cada vez mais violenta, até que eles se tornaram senhores absolutos da favela. Hoje, a venda de cocaína e maconha continua, mas de forma muito discreta, sem armas e nada ostensiva. Os atuais traficantes não andam mais com papelotes no bolso. Eles os escondem e entregam, mais tarde, nas mãos de quem os procura. É triste ver que nem tudo melhorou, mas foi um morador quem definiu com precisão a diferença entre uma situação e outra. “Tenho uma filha pequena. Ao contrário de mim, Ana Beatriz vai crescer sem nunca ter tido o criminoso como referência de poder”, resume Alexandre Firmino de Oliveira, 36 anos, irmão do DJ Thiago. Eis aí uma relevante e maravilhosa mudança.